30 de março de 2011

Apenas Saudade

Ao abrir a caixa de e-mails, deparou-se com uma mensagem de Silvio. Hesitou, mas abriu.

Eu fiquei procurando um sorriso, enquanto a paisagem quase indistinta passava pela janela do ônibus naquela noite de céu estrelado mas de lua ausente. Eu procurava um sorriso que não encontraria ali, mais que isso, eu procurava um sorriso inalcançável.

A ligação recebida horas antes de cair na estrada me trouxerá muita alegria, ouvir aquela voz doce ao telefone me remetera a lembranças de um tempo bom, um tempo que não mais voltaria. E ainda que fosse apenas pra agradecer a devolução dos discos velhos dos Mutantes.

Como sempre, eu alonguei a conversa para rápidoslongos trinta minutos. Com o intuito exclusivo de ouvir sua voz. E após desligar, retornei a ligação pra desejar um bom dia, e ouví-la novamente. Mas ficou me faltando o seu sorriso.

O sorriso de nossos abraços apertados, dos cigarros compartilhados, do vinho barato comprado no buteco da esquina. O sorriso que você me dava quando eu chegava naquela casa que tinha sua cor, a cor da sua alegria. Esse sorriso me falta, me faltará sempre. Só sobra a saudade e, por sorte, algumas migalhas de pão.

Talvez você apague esse e-mail antes de ler, talvez nunca o leia, ou simplesmente leia e ignore. Ainda assim, até logo, mas não adeus.

Em silêncio após reler o que ele tinha escrito, Caroline deitou-se ao lado de André, fechou os olhos e dormiu.


Abraço. Boa leitura.

25 de março de 2011

Concerto

A orquestra até agora não o tinha surpreendido, eram músicas que ele já vira outras vezes, ao ponto de ser entediante algumas vezes. Marcos, no entanto, tinha encantado-se com outro tipo de beleza, que não a artística. Ele sempre encontrava Sofia nos concertos, ocasionalmente conversava com ela, nunca deixara de notar o quanto ela era bonita, mas naquele dia algo era diferente.

Ele atentava para cada detalhe da moça ao seu lado, do pouco mais delicado movimento do cabelo até uma suave ansiedade no bater dos pés, passando por suaves piscar de olhos e alguns risos recatados observando a orquestra. Mas eram os olhos negros que o prendiam, ainda que de forma esquiva não cansava de tentar fitá-los.

Por alguns instantes a música da orquestra era inaudível, os traços da moça pareciam servir como mãos tapando seus ouvidos. E mais, ele por vezes desejou sentir o toque da moça, a maciez de sua pele, chegou a ter a ligeira sensação de ter hesitado em tocá-la. E ele queria tê-lo feito, ali enquanto a orquestra começava as novidades do concerto.

Se conteve, como forma de se proteger, é fato, mas os olhares diferentes que lançara naquela noite certamente o incomodariam em outras noites. Na saída do teatro, após o concerto, trocou algumas palavras com Sofia e, finalmente, a tocoou, despediu-se com um abraço que lhe trouxe ainda mais força à imaginação, o perfume dela era quase tão incrível quanto o olhar negro.


Abraço. Boa leitura.



Nota: esse conto foi manuscrito, escrevi mais cedo com uma caneta e um papel em branco.

23 de março de 2011

Distrações

A massa disforme passeava de um lado para outro na sua boca sem que ele pudesse engolir. A tal carne de soja, que teoricamente foi pensada para lembrar carne moída, mais parecia um bolo feito com vários pedacinhos de papel picado e água morna.

Estava numa cama desconfortável. A perna direita cheia de pinos, o braço direito engessado desde a altura do ombro, e metade da sua vista ainda consistia num grande borrão vermelho. E para completar a maldita nutricionista do hospital tinha colocado aquele mingau de papel para ele comer.

Ela entrou pela porta do quarto. Se ele fosse mulher, provavelmente ela teria trazido flores - costume estúpido de dar flores aos doentes que não podem nem se levantar para cheirá-las - sentou-se ao lado e começou o interrogatório. O mesmo de todas as visitas. Como tinha sido o acidente. Como ele foi cair da moto depois de tantos anos de piloto. Como a recuperação estava caminhando. Quando ia mesmo voltar para casa.

Em cada uma daquelas perguntas repetidas ele ouvia algo mais do que tinha sido perguntado. No sorriso e no brilho dos olhos dela (que compartilhavam o seu campo visual com o borrão vermelho à direita) ele fingia que as perguntas não eram meras burocracias sociais. Pensava o quanto era patético essa ilusão que ele criara para si mesmo, depois pensava se era tecnicamente possível alguém enganar-se a si mesmo, e por fim pensava que precisava largar essa mania chata que ele tinha desde a infância de ficar pensando sobre os próprios pensamentos.

Ela se despediu prometendo voltar e ele ficou só com a sua comida sem gosto. Ela era sempre uma boa companhia. Pensar nela era o seu vício (um vício que voluntariamente escolheu) e estar com ela era a sua pequena dose de alegria no meio do tédio do dia-a-dia. Seria tão bom se as coisas pudessem parar por aí.

Mas não é assim que funcionam essas coisas. Ao lado da alegria vem sempre o sofrimento. É um bônus. Vem no pacote.

Segurou o cabo da colher como quem segura o de um martelo. A desajeitada mão esquerda trazia mais uma porção do mingau sem gosto até a boca. A colher bateu no queixo e o seu conteúdo se espalhou sobre o avental hospitalar que ele vestia. Pelo visto tentar aprender a usar a mão esquerda vai ser uma boa distração para a sua confusa cabeça. Pelo menos até a próxima visita dela....

"Eu sei, é um doce te amar, o amargo é querer-te pra mim"
(Los Hermanos)

22 de março de 2011

Amargura

Ele observou o porta-retratos por alguns segundos antes de fechar a porta do quarto. Colocou a bolsa nas costas e saiu. Ignorou a tia que perguntou aonde ele ia. Olhou a hora no relógio cerca de vinte vezes nos dez metros que separam a porta de seu quarto e a porta de casa.

Subiu na sua velha motocicleta, que ele carinhosamente apelidava de Donabella. E arrancou cortando o vento. Para quem estava nas ruas por onde ele passava com tanta rapidez, poderia dizer que ele estava sem rumo certo, mas ele já tinha feito aquele caminho tantas vezes que Donabella parecia estar no piloto automático.

Ele diminuía velocidade sempre que se aproximava do prédio, passava pela guarita quase parando e sempre soltava uma piada com Pedro um dos guardas noturnos. Como era visitante e não tinha vaga, deixava Donabella em cima da grama do canteiro central do condomínio.

Subia sempre pelas escadas, não confiava em elevadores e o segundo andar não era tão alto assim. Acendia um cigarro para já chegar irritando Dona Cornélia, a mãe de Ana. Sem bater, abria a porta e entrava. Quase tudo como de costume naquela noite. A resposta de Dona Cornélia mudou quando ele perguntou onde estava Ana.

A senhora, com seus cinqüenta e tantos anos, sentada na poltrona vendo uma porcaria qualquer na TV, disse que a moça acabara de descer. Fora para o mirante do condomínio. Deixou a mochila com os livros da moça no sofá e foi ao encontro dela no mirante. Teve impressão de ter ouvido um murmúrio de Dona Cornélia enquanto fechava a porta, mas não quis perguntar nada. Estava ansioso para ver Ana.

Tinha tanta pressa que pegou o elevador para descer. Foi até o mirante praticamente saltitando. E ao chegar mais perto, apertou os olhos e entristeceu-se. Ana estava com um rapaz, de mãos dadas. Ele a chamou uma vez, timidamente. E uma seguna secamente, foi quando o rapaz percebeu e acenou para que Ana pudesse notá-lo.

- Eu trouxe seus livros. Deixei a mochila com sua mãe. Até mais.

Sem esperar uma resposta, virou-se e partiu amargurado.


Abraço. Boa leitura.

21 de março de 2011

Músicas e lembranças

As dificuldades daquele show começaram já nos preparativos: o site problemático fez com que por vários momentos eu duvidasse da efetivação da venda dos ingressos. Foi preciso enviar um e-mail para o titular da conta em que tinha sido depositado o dinheiro para que eu finalmente me assegurasse da venda. Depois veio a carteira de estudante, foi preciso tirar a de 2010 para poder comprar a meia entrada porque eu não possuía a carteira (mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa) ou seja, minha carteira serviu/servirá tão-somente para a compra dos ingressos, já que se vencerá daqui a poucos dias, já vou logo adiantando que foram os treze reais mais bem gastos da minha vida.

Com a carteira em mãos apenas dois dias antes do show, lá fomos Sérgio e eu rumo a Natal para o show dos nossos sonhos. Mas as dificuldades não parariam por aí. Chegando às portas do teatro com várias horas de antecedência descobrimos que Tácio, por ter 17 anos, 10 meses e 23 dias, precisaria da companhia dos pais para entrar no teatro. Tentamos argumentar de todas as formas, trouxemos a mãe dele para autorizá-lo a entrar na nossa companhia e funcionária dizia que não adiantava autorizar, era preciso acompanhar. Os ânimos se exaltando. Uma pequena multidão de jovens com o mesmo problema que ele já se amontoava às portas do teatro e ameaçava fazer uma rebelião. E o tempo passava.

Nove da noite. Era hora de o show começar. Desconsolados despedimo-nos dele e entramos no hall. Quando estávamos às portas do teatro propriamente dito, a multidão de menores de idade irrompe porta adentro. Aparentemente por uma falha de uma das funcionárias permitiu-se que uma garota entrasse sem os pais. "Agora que eu entrei só saio arrastada." Pronto, todos os outros tinham o pretexto de que precisavam para entrarem também. E quem conseguiria segurar aquela multidão de jovens vivendo num país sedento de cultura e ávidos por um momento de embriaguez da boa música?

Posicionamo-nos estrategicamente a uma ou duas pessoas de distância da grade que separava a pista do palco. O palco do teatro é baixo, assim quando o pano preto caiu estavam lá à altura dos nossos olhos Gessinger e Leindecker. Tocam o primeiro acorde e cantam o primeiro verso: "amanhã talvez esse vendaval faça algum sentido". Amanhã não. Hoje. O vendaval pelo qual passamos para chegar àquele momento foi instantaneamente esclarecido. "É justo que muito custe aquilo que muito vale", já diria Santa Teresa.

A próxima uma hora e meia foi inesquecível. Cantando as músicas de Engenheiros, descobrindo e me deliciando com as (até então desconhecidas para mim) músicas de Cidadão Quem.

O que torna uma música boa é a capacidade que ela tem de fazer você lembrar. Lembrar de pessoas, de fatos, de pensamentos. Em cada música, vinha a tona um momento, vinha a tona uma pessoa, vinha a tona uma emoção:

"Diga a verdade ao menos uma vez na vida, você se apaixonou pelos meus erros."

"Que amor era esse que não saiu do chão? Não saiu do lugar. Só fez rastejar o coração."

"Teus lábios são labirintos, Ana, que atraem os meus instintos mais sacanas."

"Ei mãe, eu tenho uma guitarra elétrica! Durante muito tempo isso foi tudo que eu queria ter."

"Deve haver alguma coisa que ainda te emocione."

E finalmente, no clímax do show, todos enchem os pulmões para entoar o hino:

"....mas não precisamos saber pra onde vamos, nós só precisamo ir!"

Todos voltam para casa renovados. O show acabou. Mas as músicas, e principalmente as lembranças que elas trazem continuarão nas nossas cabeças por muito tempo!

10 de março de 2011

Todo Carnaval Tem Seu Fim (Ainda Bem)

Ainda bem que todo carnaval tem seu fim, como disseram meus queridos Hermanos de barba. Esse carnaval então, me trouxe uma visão ainda menos poética do Carnaval. Culpa da decadência da moralidade na nossa sociedade contemporânea. Parafraseando Humberto Gessinger, lhes digo que nós, homens de ideias tão modernas, ainda somos como os mesmos homens das cavernas em alguns sentidos.

Vamos por partes, como o estripador. Carnis vallis, em grego refere-se aos prazeres da carne. É esse o significado do Carnaval, e isso talvez justifique toda a depravação que anualmente ocorre de maneira ainda menos moderada. Me perdoem o conservadorismo quase que ortodoxo, mas certas coisas são exageros em demasia, pra não dizer que são total perda de senso moral e estupidez anacrônica.

O Carnaval virou reduto de estereótipos em sua maioria anencéfalos: o rapaz forte e sem camisa que, cedo ou tarde, ficará impotente por causa dos anabolizantes, e a moça distinta que usa microssaias e esquece de colocar a calcinha, o que em alguns casos prolonga o Carnaval até novembro.

As músicas carnavalescas então, essas sim é que estão cada vez mais raras. Os paredões da playboyzada transformam a folia num baile funk em movimento onde a palavra de ordem sonora é sexo. O som é impróprio, ou pelo menos deveria ser, para as crianças que estão na folia, mas ninguém se importa.

A maioria das drogas da moda no Carnaval são inaláveis. Uma mistura de clorofórmio e éter, popularmente conhecida como loló, faz a cabeça da maioria. Mas tem gente mais ousada usando lança-perfume, ou ainda cocaína. A polícia faz a parte dela: procura os traficantes e faz vista grossa pros usuários, esquecendo que sem usuário o tráfico não existe.

Agora alguém pode estar pensando: "Que cara mais idiota! Se não gosta do Carnaval, respeite quem gosta!"

Se pra não ser idiota eu precisar respeitar todas as idiotices em massa que eu presenciei - e em certos casos, até pratiquei -, me perdoem, mas eu serei idiota por muito tempo ainda. Mas pensem assim, se até a Mulher Maravilha e o Super-Homem fugiram no Carnaval, idiota mesmo é quem ficou.


Abraço. Boa leitura.