22 de fevereiro de 2011

Allah-u-akbar

Na minha primeira postagem aqui no blog que não é um conto, eu vou tratar de um assunto que me interessa talvez até mais do que o Direito. A História.

Nas últimas semanas temos assistido a história ser escrita diante dos nossos olhos com os protestos no mundo árabe, que começaram com um simples feirante tunisiano que revoltado com policiais corruptos que apreenderam o seu carrinho de frutas e legumes, ateou fogo ao próprio corpo e deu início a um efeito dominó que só Deus sabe onde vai parar. Pois é, vocês sabem o que dizem sobre o bater de asas de uma borboleta....

Mas eu quero falar mesmo é sobre o porque dessa região, literalmente no centro do mundo, nunca conseguir, no campo da política, uma configuração que seja estável, justa, e minimamente democrática.

A resposta é simples, mas complexa: a civilização cristã-ocidental é marcada fortemente pela existência de duas comunidades, de dois agrupamentos de pessoas: o Estado e a Igreja. Divisão bem expressa pela frase de Jesus: "Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus." Em alguns momentos da história, estas duas instiuições foram aliadas, em outras inimigas; houve épocas em que a Igreja foi submissa e subserviente ao Estado, em outras épocas aconteceu justamente o contrário. Mas em todos os casos, sempre esteve clara a existência das duas instituições. Até mesmo em territórios administrados politicamente por bispos ou abades, onde estes exerciam também o papel de príncipes, havia uma dupla investidura: do poder espiritual pelo Papa, e dos poderes temporais pelo Imperador.

Já no Islão, essa divisão simplesmente não existe, não há dois agrupamentos de pessoas, não há duas comunidades - uma política e uma religiosa - há apenas a umma formada pela união de todos os "crentes em Alá e em seu santo profeta Maomé" e há apenas uma lei para regê-la, em todas as questões da vida - religiosas, políticas, econômicas, culturais, sociais - a Xaria, lei sagrada do Alcorão, de forma que um "Estado de Direito" aos moldes ocidentais é um corpo estranho na sociedade islâmica: eles não se dão com a idéia de um Estado que crie, administre e aplique as leis porque eles já têm todas as leis de que precisam na Xaria. E esse fato foi ao mesmo tempo a glória e a danação da civilização muçulmana.

Na época do surgimento do Islão, esta unidade foi a responsável pela expansão do Império Árabe, que em seu apogeu ia da Espanha à Índia. Quando os soldados árabes lutavam, não o faziam "pelo seu país" como faziam os ocidentais, lutavam pelo seu Deus. E o laço que unia todos os homens desse gigantesco império não eram os laços de sangue e de honra, como nos reinos ocidentais, mas era simplesmente o fato de que todos criam que "não há deus senão Alá, e Maomé é seu profeta".

Por outro lado, isso também representou a ruína do Islão. As primeiras divisões que surgiram, já na época dos Rashidun, os "califas bem guiados", e que dividiram o mundo islâmico em Sunitas, Xiitas e Caridjitas, não diziam respeito a desavenças teológicas, mas a desentendimentos políticos sobre quem deveria ser o líder único e supremo da umma. No ocidente, não se via nenhum problema em crer na mesma religião e ser governado por diferentes reis. No Islão isso era inconcebível. Em pouco tempo, dentro do ramos Xiita surgiram outros grupos (ismaelitas, zaiditas, duodecimanos....) divisões religiosas sempre originadas de questões políticas. Enquanto no ocidente, as guerras faziam surgir e desaparecer países, sem que isso afetasse o cristianismo, e a revolução protestante dividia o cristianismo, sem que isso afetasse a unidade dos reinos.

Quando Hulagu, neto de Gêngis Khan chegou a Bagdá para desferir o golpe de misericórdia no outrora glorioso Califado Árabe, o que ele encontrou foi: sunitas divididos em dois califados: o de Córdoba e o de Bagdá. Xiitas governando o norte da África e o Irã, regiões sobre as quais o Califa ainda reivindicava soberania, Califa por sua vez que estava politicamente nas mãos dos turcos, que se apresentavam como "defensores do califa legítimo e da ortodoxia sunita contra o erro do xiismo" mas que em verdade estavam governando de maneira autônoma.

Saltemos agora no tempo, para a época do decadente Império Turco-Otomano, o último império islâmico de grandes dimensões, que conseguiu esse feito unificador,não pelo assentimento unânime de todos os islâmicos, reconhecedores dos sultões otomanos como legítimos líderes da umma, mas sim pelo uso da força bruta mesmo.

Justamente por isso, os árabes lutavam e se desesperavam para se libertar do império turco, e os impérios europeus "caridosamente", e em manifestação de apoio a essas "legítimas manifestações do povo árabe contra o opressor império turco", invadiram e conquistaram pouco a pouco o império, loteando seus territórios em colônias britânicas, francesas e (em menor escala) italianas. Quando essas colônias começaram a se libertar foi que surgiu o cenário que vemos hoje. Surgiram reinos que baseavam sua autoridade não na religião, mas simplesmente no fato de que os reis haviam sido lá colocados pelos colonizadores britânicos. Surgiram também as Jamahiriyas ou "repúblicas árabes", tentativa de mesclar um modelo político europeu com uma realidade islâmica. Claro que não poderia dar certo.

As monarquias tornaram-se em boa parte absolutistas, e as Jamahiryias tornaram-se ditaduras, para desespero dos ocidentais. Qual a saída? A Turquia, depois de perder fragorosamente um império transcontinental e uma guerra mundial resolveu separar totalmente religião de estado, se "ocidentalizar"como dizem por lá. Bom para a Turquia, ruim para os turcos, que tiveram que engolir a seco um modelo com o qual não estavam acostumados. Mas, aprentemente, noventa anos depois o pessoal se acostumou e a Turquia vai razoavelmente bem das pernas no quesito democracia. A outra saída foi tomada por Irã e Arábia Saudita, mandar "esse negócio ocidental" de democracia às favas e criar uma teocracia regida unicamente pelo Alcorão. Consequência: direitos humanos desrespeitados e revolta do mundo ocidental (mas eles estão pouco se lixando para o mundo ocidental mesmo....).

A terceira saída foi tomada pelos jovens do norte da África, a partir daquele ato de autoimolação do feirante tunisiano. Sair as ruas, pôr as ditaduras abaixo e esperar pra ver que bicho dá. Alguns dos manifestantes torcem que seus países sigam o exemplo da Turquia, outros esperam que siga o rumo do Irã. O que vai acontecer? Impossível dizer. Efeitos de uma revolução sem líderes, ninguém sabe o que vai acontecer no próximo ato.

P.S.:Desculpem se me alonguei demais. É que sempre me empolgo quando falo de história.

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