23 de março de 2011

Distrações

A massa disforme passeava de um lado para outro na sua boca sem que ele pudesse engolir. A tal carne de soja, que teoricamente foi pensada para lembrar carne moída, mais parecia um bolo feito com vários pedacinhos de papel picado e água morna.

Estava numa cama desconfortável. A perna direita cheia de pinos, o braço direito engessado desde a altura do ombro, e metade da sua vista ainda consistia num grande borrão vermelho. E para completar a maldita nutricionista do hospital tinha colocado aquele mingau de papel para ele comer.

Ela entrou pela porta do quarto. Se ele fosse mulher, provavelmente ela teria trazido flores - costume estúpido de dar flores aos doentes que não podem nem se levantar para cheirá-las - sentou-se ao lado e começou o interrogatório. O mesmo de todas as visitas. Como tinha sido o acidente. Como ele foi cair da moto depois de tantos anos de piloto. Como a recuperação estava caminhando. Quando ia mesmo voltar para casa.

Em cada uma daquelas perguntas repetidas ele ouvia algo mais do que tinha sido perguntado. No sorriso e no brilho dos olhos dela (que compartilhavam o seu campo visual com o borrão vermelho à direita) ele fingia que as perguntas não eram meras burocracias sociais. Pensava o quanto era patético essa ilusão que ele criara para si mesmo, depois pensava se era tecnicamente possível alguém enganar-se a si mesmo, e por fim pensava que precisava largar essa mania chata que ele tinha desde a infância de ficar pensando sobre os próprios pensamentos.

Ela se despediu prometendo voltar e ele ficou só com a sua comida sem gosto. Ela era sempre uma boa companhia. Pensar nela era o seu vício (um vício que voluntariamente escolheu) e estar com ela era a sua pequena dose de alegria no meio do tédio do dia-a-dia. Seria tão bom se as coisas pudessem parar por aí.

Mas não é assim que funcionam essas coisas. Ao lado da alegria vem sempre o sofrimento. É um bônus. Vem no pacote.

Segurou o cabo da colher como quem segura o de um martelo. A desajeitada mão esquerda trazia mais uma porção do mingau sem gosto até a boca. A colher bateu no queixo e o seu conteúdo se espalhou sobre o avental hospitalar que ele vestia. Pelo visto tentar aprender a usar a mão esquerda vai ser uma boa distração para a sua confusa cabeça. Pelo menos até a próxima visita dela....

"Eu sei, é um doce te amar, o amargo é querer-te pra mim"
(Los Hermanos)

3 comentários:

Fahad M. Aljarboua disse...

"Ela se despediu prometendo voltar..."

Essa é aquela promessa que mata, que faz esperar, que faz cada segundo parecer uma eternidade.

utopic disse...

Cada conto...uma história. E todos os enlaces e a trama levam até alguém aí fora que gosta de sentir e ser sentido. =) Até o próximo capítulo...

Anelisa M. disse...

Costume estúpido de dar flores para alguem que não pode sequer cheirá-las. Interessante. Quando eu penso em flores o sentido que me vem à cabeça é o da visão, sim, porque mais do que as cheirar, somente vê-las já é fantástico. Elas têm aquela beleza que somente a natureza pode dar:a verdadeira!
Do que percebo, talvez, uma certa falta de sensibilidade do autor, perfeitamente compreendida ao analisar que se trata de um personagem masculino idealizado pela mente de um homem! No mais, só posso entender a parte do "costume estúpido" pelo lado de que o costume como todo hábito por tornar-se rotineiro, padrão, careça de significado, tornando-se vago.

Adorei o conto Sávio, principalmente a comparação do bolo de soja com papel e agua. Vejo que compartilhamos do mesmo paladar (eu e o carinha do texto, óbvio).

beijos amigos
Anelisa M.