15 de setembro de 2011

Decifra-me ou devoro-te

A mesa em que ela estava sentada ficava ao lado de uma vidraça. Quando ele desceu do carro - na hora marcada, como sempre - logo a viu através do vidro. Ela também o viu descendo do carro.

Enquanto ele entrava sorridente no restaurante e se dirigia à mesa ela mantinha-se na mesma posição. O cotovelo esquerdo na mesa, o queixo apoiado sobre o punho. A vista olhando através da vidraça para algum ponto indeterminado do outro lado da rua. Ela o tinha visto e ele percebera, mas ela não desviou o olhar do que quer que fosse que ela estava visando.

No seu rosto não havia indiferença, ela na verdade parecia estar ocupada com algo muito importante para poder falar com ele. Só depois que sentou-se à mesa os olhos dela viraram-se para ele.

Aqueles olhos....

Eles eram de um tom esquisito - no sentido original da palavra - de castanho, quase da cor de vinho tinto. Como se tivesse sido pintada por um artista que dispunha de poucas cores, seu cabelo era rigorosamente do mesmo tom, contrastando com a pele muito branca, quase pálida.

Quando ele sentou-se ela esboçou aquele seu sorriso característico, dado muito mais com os olhos do que com a boca; sem mostrar os dentes. Para comer ele pediu um assado, especialidade da casa, e uma cerveja irlandesa para acompanhar. Ela fez um comentário sobre a harmonização do prato com a bebida e a partir daí começou a conversa.

As conversas com ela eram sempre agradáveis. Como um maestro conduz uma orquestra, ela conduzia os assuntos, passava de uns para os outros sem que se percebesse a mudança. Comentários bem-humorados se alternavam com outros, de tom ácido, sempre no momento exato. Mas havia algo estranho em seu olhar....

Por mais profundamente que ela estivesse olhando nos olhos dele, e por mais concentrada que estivesse na conversa, seu olhar sempre parecia dizer que ela estava pensando em algo de mais importante, de mais misterioso.

Desde a época em que ela se mudou pra a rua dele e eles se conheceram, aquele olhar o maravilha e o assombra. De lá pra cá outras mudanças já fizeram com que eles se afastassem um pouco mais, no entanto, decifrar aquele olhar continuava sendo para ele uma obsessão.

Por esse lado, conversar com ela, estar com ela, era um tanto como lutar esgrima. Uma luta elegante, da qual ela era mestra. Num momento parecia abrir a guarda, e atraía um golpe apenas para revidar com um contragolpe fulminante. Touché!

De tanto sofrer com essas estocadas, ele já estava calejado, e às vezes tinha a impressão de que continuava a fazer aquilo apenas como uma espécie de esporte. Mas então ela dava mais um daqueles sorrisos, como só ela sabia fazer, e ele logo lembrava-se do motivo pelo qual lutava para decifrar aquele misterioso olhar.

Ambos acabaram de comer, ela recusou a sobremesa, disse que estava de dieta. Ele olhou o relógio, lembrou que tinha um compromisso. Um velho amigo estava na cidade e eles haviam combinado de jogarem uma partida de tênis.

Eles se levantaram - embainharam seus floretes - e foram saindo do restaurante, na calçada ela perguntou se poderia assistir a partida de tênis, afinal não tinha nada pra fazer mesmo.

Ele respondeu rápido que sim. Enquanto eles se dirigiam cada um para o seu carro trocaram um olhar rápido, quase acidental. Foi então que por um instante, tão rápido que ele não poderia nem mesmo dizer com certeza se tinha acontecido, ele teve a ligeira impressão de finalmente ter entendido tudo.

Seria possível?

Não.

Deve ser só coisa da sua cabeça....

4 comentários:

Bebel disse...

Parabéns pelo conto,a cada nova leitura eu tenho mais certeza que sua habilidade para escrever contos vem do berço.A descrição de cada personagem e momento é impecável.PARABÉNS.Você muito me orgulha.

Fahad M. Aljarboua disse...

Hahahaha. Coisa mais feia Sávio, acabar o conto justo no clímax! E ainda mais com uma pergunta dessas:

"Seria possível?"

Conto fantástico meu amigo, com gosto de quero mais.

Abraço.

Roberta Freitas disse...

Adorei! Tão chique alguém escrever um conto hoje em dia e usar florete. =) Lembrei de uma cena dessas , de troca de olhares assim,na minha vida! =)

Karoline disse...

Sávio, adorei o blog, o conto!! Parabéns. Virei seguidora assídua! ^^